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Entre passado e presente: A magia de oração para desaparecer
Em Oração para Desaparecer, a premiada escritora cearense Socorro Acioli cria um enredo de realismo fantástico que pulsa com brasilidade.
Inspirada em acontecimentos reais e construindo uma narrativa marcada por referências culturais e históricas brasileiras, Acioli apresenta uma história de memórias, mistério e ancestralidade. A personagem central, Aparecida, é uma "ressurecta" que surge desnorteada e sem lembranças em Portugal.
No início do livro, ela descreve sua experiência de forma visceral: “Acordei com os olhos grudados de lama, o nariz entupido de terra e a boca cheia de areia estralando nos dentes. Alguém me enterrou. Bichos alisavam minha língua, rastejavam pelos ouvidos e por outros caminhos para dentro das carnes. Debaixo do chão era uma agonia gelada, molhada, fedida.”
Essa introdução poderosa estabelece um tom angustiante, e ao longo do romance, Aparecida reconstrói sua identidade fragmentada, conectando-se ao seu passado enraizado no Ceará, terra do povo Tremembé.
A cultura indígena, as tradições locais e a luta pela memória individual e coletiva marcam a narrativa, fazendo do livro um verdadeiro primor literário que celebra o imaginário brasileiro.
O romance se desdobra em uma narrativa envolvente, construída em três partes. Na primeira, somos apresentados a Aparecida, uma mulher sem passado aparente, resgatada em Portugal e marcada por um misto de amnésia e sonhos perturbadores.
Na nova realidade, seus salvadores acreditam que ela é uma ressurecta — alguém que, de acordo com mitos e crenças, retorna à vida em uma espécie de reencarnação. Aparecida se vê perdida e imersa em um mundo de fragmentos, tentando compreender o que lhe aconteceu.
Em um processo de reconstrução de identidade, ela conta com a ajuda de Félix Ventura, um personagem que Socorro Acioli “empresta” do escritor angolano Eduardo Agualusa, conhecido por seu romance O Vendedor de Passados.
Félix é um especialista em criar passados para seus clientes, e ele desenvolve uma história baseada nos sonhos e nas pistas dadas por Aparecida.
A segunda parte do livro é narrada por Miguel, um homem que relembra e conta sua própria história a Jorge, um personagem mais jovem, que se revela profundamente conectado à trama.
A cidade de Almofala, no Ceará, torna-se o cenário central, onde a história de Joana Camelo, antes de seu desaparecimento, é revelada. Joana, que na verdade é Aparecida, é descrita como uma mulher de espírito livre, trigueira, com uma personalidade vibrante e sedutora.
Neste ponto, o leitor também conhece a história da igreja soterrada, um evento verídico que serviu de inspiração para Acioli e seu romance. Através da história da igreja, a autora introduz elementos da cultura Tremembé que se entrelaçam de forma gradual e crescente à narrativa.
À medida que avançamos, percebemos que a identidade de Aparecida e Joana começam a se fundir, revelando-se como duas faces de uma mesma pessoa, cuja conexão com o Ceará e com o misticismo do povo Tremembé é profunda e irrefutável.
A última parte do romance revela Aparecida como alguém que incorpora as memórias e o espírito de Joana, retomando sua brasilidade e projetando um futuro ao lado de Jorge, personagem com quem desenvolve uma forte ligação.
Essa unificação entre Aparecida e Joana representa a recuperação de uma identidade cultural esquecida, explorando a importância de aceitar a ancestralidade e as raízes indígenas para construir um futuro autêntico. Com a tensão crescente, Aparecida passa por momentos de desespero e transformação:
“Quando eu já suplicava pelo fim, o buraco me apertou como uma mão gigante de terra, envolveu meu corpo inteiro e começou a me expulsar. Os olhos lacrados, a hora do parto, a boa hora de Nossa Senhora, as palavras se repetiam no pensamento tomado de desespero. (...) Dois pares de braços surgiram cavando, falando, abrindo espaço para a luz. Buscavam por mim.”
Esses trechos não apenas intensificam a experiência de Aparecida, mas também refletem a luta pela liberdade e pela descoberta de si mesma. Em uma reflexão poderosa, Aparecida pondera:
“A vida é feita de palavras, elas explicam e fazem nascer e morrer. Se ninguém pronuncia um nome este ser está morto, mesmo que respire e leve um coração batendo no peito. Estar vivo é ser palavra na boca de alguém. Não lembrar delas me condenou ao abismo, não saber os nomes das pessoas, do meu lugar, a narrativa da minha vida, tudo o que somos é história e história se conta com palavras. Por isso bastou um bilhete. Lembrei-me da missa: ‘Mas dizei uma palavra e serei salvo’.
Fui salva por apenas duas, o nome da cidade de onde vim e o meu nome.” Essa passagem destaca a importância da memória e da linguagem na construção da identidade, enfatizando que a essência de quem somos está intrinsecamente ligada às histórias que contamos e às palavras que utilizamos.
Mais perto do final, Joana Camelo, agora plenamente integrada em Aparecida, reflete:
“Agora eu sei o que é ser essa mulher brasileira, aquela pergunta que tantas vezes me fiz. A igreja de Almofala, onde fui deixada por minha mãe e de onde renasci para a vida nova, é o meu Brasil".
Eu o vejo ali, nos mortos que rondam as paredes brancas, nos cantos das três raças que eu escuto, na Encantaria, no nosso Torém no adro, Nossa Senhora da Conceição é a Oxum africana, é a Labareda Tremembé.
E eu, Joana, sinto orgulho da força da alma brasileira que abrigo no meu corpo.” Esta citação poderosa encapsula a conexão entre a protagonista e suas raízes culturais, celebrando a diversidade e a força do Brasil.
Oração para Desaparecer é uma obra que sintetiza elementos de realismo fantástico e história, abordando o que significa pertencer e lembrar, em um país de raízes tão complexas e ricas como o Brasil.
A estrutura narrativa firme e a escrita poética de Socorro Acioli conferem ao livro uma qualidade envolvente e evocam as influências de grandes autores como Borges, García Márquez, Jorge Amado e Murilo Rubião, que também exploraram o fantástico em suas obras.
Lançado pela Companhia das Letras em 2023, com uma edição especial pela TAG para seus assinantes, o livro oferece uma experiência literária onde a imaginação transcende a história, criando um vínculo poético entre o leitor e a identidade brasileira.
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